Eu cresci numa casa feia.

Modéstia à parte, acho minha família uma gracinha. Gente divertida, sem tempo ruim e principalmente fofoqueira (o que parece um defeito, mas se você também é fofoqueiro vira uma qualidade). Tenho lembranças ótimas da minha infância e adolescência. Às vezes lembro de episódios que fico na dúvida se realmente aconteceram ou eu inventei, que nem invento cenas para os livros que escrevo. Mas todos são felizes. Que nem quando minha mãe comprou pra mim duas folhas imensas de isopor para eu construir minha primeira casinha de boneca (aconteceu) ou quando eu e minha irmã ganhamos num Natal os bonecos dos Power Rangers, que descobrimos escondidos debaixo da pia (aconteceu demaaaais). Aquela vez que uma carroça passou por cima da minha prima e a família ri disso até hoje (minha prima não deve achar muito feliz, porém, aconteceu) e aquela outra que nosso cachorro atacou uma vizinha que se intrometeu no nosso quintal. Ela passa bem (a verificar).

Em todas elas eu lembro de como a casa em si era feia.


Pequena, quente, escura. Úmida. Eu cresci numa casa que não foi feita para pessoas crescerem. Ideal para bactérias e fungos, eu acho. Os ângulos nunca fizeram sentido. Todas as paredes pareciam uma quina. Fiquei muito frustrado quando comprei meu primeiro celular, que tinha uma câmera que hoje em dia seria considerada horrível, mas na época era tudo de bom. Não dava para fotografar naquela casa. Nada era instagramável. Eu queria fazer vídeos, tirar selfies, mas não existia cenário ali. Não tinha, sei lá, uma parede branca. Tudo era carcomido, cinza, rachado ou quebrado. Era uma casa baixa demais, do tipo que uma vez minha mãe foi fazer uma oração e bateu com a mão no ventilador de teto. Uma vez não, duas vezes. Conforme eu ia crescendo, aumentava minha certeza de que qualquer dia o ventilador ia me decapitar. 

Um dia acordei com uma lacraia na minha cama. Muita sorte, porque já tinha acontecido de acordar com uma no meu rosto. Saí correndo pelado do banheiro mais de uma vez porque uma lacraia subiu na minha perna. Já levei uma lacraia e uma barata pro trem porque deixei a mochila no chão de casa por mais de 2 horas. Todo mundo no vagão ficou "meu deus, uma barata!!! esse trem está realmente caindo aos pedaços". Só eu sabia que aquela barata tinha saído da minha mochila. Praticamente um parente meu. Não sei se eu já disse que odeio lacraias. Acho que simpatizo com baratas, porém. Minha mãe conta que não podia dar mole quando eu era bebê, colocava barata na boca se eu ficasse no chão por mais de 2 horas.

Família <3

Inclusive, se minha mãe lesse esse texto, ia falar "ai, filho, a casa não era tão ruim assim!!!". Lembro de uma vez que a professora de Estudos Sociais na quarta série pediu pra gente fazer uma lista dos problemas de ordem pública que a gente enfrentava em casa. Eu escrevi uns 10 itens, entre eles falta de água, de saneamento básico e de energia elétrica. Minha mãe ficou indignada. "pelo amor de Deus, Felipe!!! A gente não passa por isso! Sua professora vai achar que estamos passando necessidade". No mesmo dia faltou luz e água. Eu e minha mãe ficamos no escuro rindo da minha lista profética. Do saneamento básico ela nem falou nada, porque a gente tinha um valão a céu aberto no quintal.

Eu vou poupar vocês das histórias com ratos. Traumas de guerra aqui.

Nunca faltou comida, realmente. A gente era limpinho. Minha mãe trabalhava pra caramba e dava conta de tudo. Meu pai era ausente, né, mas aí também já era querer demais. Minha mãe o colocou pra fora de casa porque mais atrapalhava do que ajudava. Uma pessoa a menos na casa deixava a gente respirando melhor. Eu sempre me considerei feliz. O problema mesmo era a casa.

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Um amigo me disse uma vez que eu tinha mania de grandeza. Quando eu saí de casa em 2017, só queria saber de morar de aluguel em casas espaçosas e ILUMINADAS. Daí ele veio com essa de que eu estava escolhendo demais, que tinha mania de grandeza por só querer alugar casas com pé-direito alto. Análise errada dele. Não era mania de grandeza, era um grito de socorro.

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Uma coisa sobre a classe C que talvez pessoas das classes A e B não saibam é que é muito difícil sair dela. Eles sabem, né, mas fingem. Não é só se esforçar. Às vezes é arrastar um mundo. Não vou cometer o erro aqui de traçar a faixa salarial que separa o pobre do rico, mas depois de ser a primeira pessoa da minha família a se formar numa faculdade e conseguir me manter no mercado de trabalho por mais de 10 anos, eu sou menos pobre do que já fui. Eu compro um livro sempre que eu quero. Eu publiquei um livro. Nunca me falta dinheiro de passagem. Tem uma piscina no meu condomínio. A palavra condomínio choca meu eu de 10 anos atrás mais do que a piscina. De alguma forma, sinto que superei o destino que o lugar onde eu nasci me ofereceu. Eu deveria vender curso no Instagram. Mas é isso, eu acho que eu fui mais longe do que imaginei que iria, mas, ainda assim, não longe o suficiente.

Tem dias que eu pego sol na minha varanda e lembro que minha mãe tá numa casa em que o sol não entra.

Acho que o único jeito de ser feliz é fazendo que nem a Anitta e sustentando todos os familiares. Quer um carro? Toma. Quer uma casa? Leva. Tem gente que julga, né, acha que ela está comprando os parentes. Mas aposto que ela dorme muito bem sabendo que ergueu todo mundo junto com ela. Eu tô aqui, até vivendo bem, mas sem força para arrastar todo mundo comigo. Eu achava que depois da faculdade a gente virava a Anitta.

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Mês passado a gente resolveu derrubar a casa. Minha mãe perguntou se a gente não conseguiria apenas reformar. Eu falei "Mãe, a gente não tem dinheiro pra derrubar a casa, mas a gente vai". Não sei mesmo se a gente tem esse dinheiro. Eu não tenho. Quem sabe no futuro. Eu posso ou não um dia ter dinheiro para derrubar uma casa e construir uma nova do zero, mas agora eu não quero saber disso.

Minha mãe vai ter uma casa nova, porra.

Do jeito que ela quiser. Com luz, espaço, cômodos que não pareçam que foram erguidos na base do ódio. Eu tô em êxtase. Menos por construir uma casa nova do que por destruir a antiga. A gente não merecia aquela casa. Queria eu mesmo dar a primeira marretada.

Oi, mãe! Vim visitar!


Realmente é muito estranho que eu tenha sido uma criança feliz.

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Uma vez quando criança eu briguei com a minha irmã mais velha e escrevi Carol piranha na parede do quarto. Minha mãe ficou horrorizada com meu vocabulário, mas impressionada que eu já sabia escrever. Hoje eu lembro disso e fico rindo sozinho. Tô contando para a partir de hoje vocês me ajudarem a lembrar disso também, porque a parede já não existe mais :'-)