Vocês sabem que eu escrevo livros, né? E acho que eu escrevo porque, antes, sempre fui de ler. Tem muita gente que não curte uma boa leitura, e eu entendo a maioria dos motivos, mas livro pra mim sempre foi uma arte muito fácil. Não precisa de um manual de instrução. Você pega o livro e lê. A sua bagagem emocional vai te guiar por um caminho que pode ser diferente do caminho que eu vou percorrer com o mesmo livro, mas em algum lugar você vai chegar. Então, para mim, isso já basta. 


Vale o mesmo para filmes, séries, enfim, narrativas, sabe? Artes desse tipo são autoexplicativas (tirando aqueles filmes ruins que você tem que ir na internet entender o final - ou eu que sou burro?). Você lê, assiste, consome e, se tudo der certo, entende. A arte imediatamente te causa algo. Pode ser algo legal ou desagradável, você pode gostar ou não, mas ela fez o que veio fazer e vida que segue.

Quadros não são assim. Pinturas, esculturas. 

Na maioria das vezes, não contam história nenhuma nem precisam ter significado algum. Eles apenas são. Parece super profundo dizer isso, mas é justamente o motivo pelo qual nunca consegui me conectar com esse tipo de arte. Juro pra vocês, pode ser o romance mais bobo que for, mas um livro sempre está dizendo alguma coisa. A pessoa que escreveu pode até nem ter noção, mas o livro está falando. Na construção dos personagens, no rumo da história, nos diálogos, no desfecho. O leitor pode até achar que está passando ileso por um livro, mas ledo engano. Agora, por uma pintura? Às vezes aquela cesta de frutas é só uma cesta de frutas mesmo. Aquela maçã não significa a derrocada do capitalismo. A banana não é a depressão do pintor. Nossa, por que será que a artista fulana pintou o céu de verde? Uma crítica ao status quo? Não, gente, acabou a tinta azul naquele dia. É tipo isso. Mas aí é que tá: não é sempre assim. Há várias artes plásticas cheias de críticas e dores e dramas e histórias por trás, mas às vezes é simplesmente muito difícil diferenciar, ainda mais quando você começa a entrar na arte contemporânea.

Isso tudo só para dizer que até então eu nunca tinha apreciado um quadro de verdade. Minha sensibilidade artística sempre foi dizer "Nossa, esse rosa combinou com o azul, amei", mas só. Já vi gente chorando na frente de um pintura ou então contemplando uma obra de arte por vários minutos, hipnotizados, aí, quando eu fui olhar, era um troço que pareciam ter feito de má vontade e ainda derramaram café em cima. Eu não entendo, sabe. Eu sou a pessoa que vai em museus e pensa "Ué, gente, um monte de móvel velho? Quem vai querer ver isso?". Tenho toda uma birra com museus e galerias de arte em geral porque acho que eles não se esforçam o suficiente para entreter o público, como fazem por exemplo um cinema ou, sei lá, uma vitrine de shopping. Eu deveria ir preso só por publicar essas opiniões, né.

Aí meu marido comentou que queria passar nossas férias numa cidade cheia de museus.


Belo Horizonte foi a escolha óbvia por vários motivos: 1) É uma cidade muito bonita, e eu e Arthur temos esse desejo de conhecer cidades bonitas 2) É perto do Rio de Janeiro, onde a gente mora, então é um lugar que nosso orçamento de férias alcança 3) Belo Horizonte era alvo desse comentário MARAVILHOSO que a gente encontrou num blog de viagem que publicou sobre o que fazer na cidade:

Transcrição do comentário do Gleyson: "A pior capital para se visitar,nada que realmente seja interessante, geografia péssima,onde faz de uma caminhadinha uma experiência aflita O que salva é a culinária, mesmo assim sabendo garimpar, transito caótico,motoristas ruim de roda,parece nunca ter frequentado uma auto escola"


Transcrição do comentário do Gleyson: "Moda cafona, a falsidade das pessoas parece ser o carro chefe, onde vc esta num roda de amigos, virou as costas pra ir ao banheiro vc vira o assunto… Ponto turístico principal uma lagoa, ou seja um esgoto a céu aberto, impossível ficar perto em alguns pontos, não se tem uma ciclovia que preste, transporte publico é uma vergonha,metrô nem se fala, melhor seria não ter de tão insignificante queé a linha…resumindo, não perca seu tempo e dinheiro vindo a bh"


Transcrição do comentário do Gleyson: "De Belo, o Horizonte não tem nada, a diversão é apenas bar, bar,bar,bar,bar e mais bar, se vc não é um alcoolatra, ai que fica sem opção de oq fazer mesmo". Abaixo, Larissa responde: "Gente???"

Gente, eu juro por tudo que é mais sagrado, eu CHOREI DE RIR lendo esse comentário, estou falando literalmente de LÁGRIMAS ESCORRENDO pela minha cara. FOI NO BANHEIRO VIROU ASSUNTO. A LAGOA É UM ESGOTO A CÉU ABERTO. MODA CAFONA. O que encerra com chave de ouro é o completo choque da dona do post que nem tem o que responder diante de tanta loucura: "Gente???".

A GENTE PRECISAVA IR PRA BH!!! E fomos. Deus abençoe Gleyson.

Abençoada seja também Larissa Vida Cigana, pois o post dela nos guiou dia e noite na cidade. Éramos nós quatro pra cima e pra baixo: Eu, Arthur, Gleyson e Vida Cigana. Qualquer mínimo morro que a gente subia, um de nós dois falava "Meu Deus, que experiência aflita". Cada Uber que a gente pegava, ficávamos na expectativa de ser ruim de roda ou do trânsito ser caótico. Todas as pessoas foram extremamente gentis com a gente O TEMPO TODO, mas graça ao Gleyson comentarista de portal sabíamos que a falsidade é o carro chefe do pessoal de BH, devia estar todo mundo falando da gente quando íamos ao banheiro. Tudo que dava errado, eu ficava "Gente???". Ai, que delícia de viagem.

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O Gleyson deve ter um desafeto com museus muito maior do que o meu pra dizer que Belo Horizonte só tem bar, porque, gente, VÁRIOS MUSEUS. Ficamos lá cinco dias e dava para sortear em qual museu a gente queria ir. Eu poderia falar de todos aqui, mas sinceramente? Se você quer um roteiro de viagem sério, vá lá ler o blog da Vida Cigana, aqui eu só venho com a farofa. Então: O PIOR E O MELHOR MUSEU DE BH!!!

O PIOR MUSEU: Casa Kubitschek. É a casa em que o ex-presidente morou. Fica às margens da Lagoa da Pampulha O ESGOTO A CEU ABERTO, e a casa em si é, bem, uma casa. É o que eu já falei sobre museus, sempre fico com a impressão de que eles não se esforçam para me entreter. Lá na Casa Kubitschek, por exemplo, os cômodos estão lá de pé, legal, há meia dúzia de móveis aqui e ali, você entra num quarto e tem uma cama, um guarda-roupa, uma cadeira antiga num canto e é isso. Legal. Tá bom, gente, mas cadê a história? O que o Juscelino Kubitschek fez naquele quarto? Quem dormia ali? Cadê as fofocas? Não tem? Nenhuma? Pelo amor de Deus, inventem. Falem que foi nesse quarto que, sei lá, alguém morreu. Que fulano traiu cicrana. Que o bebê beltrano nasceu. Arrumem essas histórias e colem nas paredes, ENTREGUEM AO PÚBLICO ALGO MAIS QUE UMA CADEIRA VELHA. A Casa Kubitschek poderia ser a casa de qualquer pessoa. Vá lá se você quiser ver uma casa.

O MELHOR MUSEU: De longe, o Inhotim. Ah, mas ele nem fica em Belo Horizonte. Mas esse texto é meu. Escreve o seu aí. O Inhotim de fato fica na cidade de Brumadinho, mas eu e Arthur fizemos um bate-volta que valeu super a pena. O próprio lugar se proclama um "museu a céu aberto", mas, sinceramente, eu acho que só gostei porque não lembra em nada um museu. É na verdade um imenso jardim com uma ou outra obra de arte aqui e ali. Por mim, tudo bem. Tem muita arte contemporânea, algumas delas interativas, a maioria belíssimas. Entre as belíssimas também conto o homem pelado ao vivo e a cores exposto numa das galerias, Deus abençoe. Mas são os jardins que realmente tornam o tour incrível. Flores, árvores, plantas de vários tipos. Apenas um milionário entediado para fazer do quintal dele um centro artístico, está de parabéns.





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Mas, no meio do caminho, uma exposição sobre a Nise da Silveira me impactou mais do que o pênis do moço no Inhotim. Para quem não sabe, como eu também não sabia, A Nise da Silveira era Deus. As religiões ao redor do mundo esse tempo todo completamente equivocadas. Gente, QUE MULHER. A Nise foi uma médica psiquiátrica que dedicou a vida todinha a humanizar o tratamento que os pacientes das alas psiquiátricas recebiam. Ela foi contra vários tipos de tratamento violentos lá pelas décadas de 50-70, tratamentos que hoje nós consideramos absurdos. As descrições são horrorosas. Mas a mulher não apenas tentou, ela foi lá e fez. Seria impossível resumir nesse texto tudo o que eu vi, mas até pra cadeia a Nise foi e lá dentro fez vários contatos que a ajudaram a expandir sua influência.

Numa das salas da exposição (vimos no CCBB da Praça da Liberdade!), vários quadros estavam sendo exibidos. Pois é, arte desse tipo que eu olho e fico "Ok, um quadro". Aquarela, óleo sobre tela, essas coisas. Eu não estava entendendo muita coisa, como sempre. Eram no geral pinturas retratando janelas coloridas e até aí tudo bem. Em algum lugar por lá estava escrito que a Nise pedia autorização para tirar alguns pacientes das alas e levar para o ateliê dela, para passarem o tempo pintando o que quisessem, uma espécie de terapia através da arte. O ateliê dela tinha um janelão, daí esse tanto de janela, a maioria dos pacientes pintava o que estavam vendo.


Lá estava o quadro do Emygdio de Barros, mais uma janela psicodélica, bem bonito até. Mas foi a notinha com uma fala da Nise ao lado do quadro que me quebrou:

"Eu o trouxe porque já faz dias que, quando vou buscar os outros que têm autorização, noto no canto do olho deste a vontade de vir também. Diante disso, baixei a cabeça. Saber ler no canto do olho de um esquizofrênico não é para qualquer pessoa, não. Nem psiquiatra, nem psicólogo, nem sábio de qualquer espécie. Em seguida, procurei o psiquiatra do Emygdio para dar uma satisfação da vinda dele para o meu ateliê. E ele me disse: – Se quiser autorização, eu dou, mas não adianta nada porque ele já está há 23 anos internado, em estado de decadência psicológica muito profunda, e não vai fazer nada que preste"

E daí o homem se transformou num dos gênios da pintura brasileira??? Gente, eu fiquei DESTRUÍDO. O quadro agora tinha todo um significado que eu não estava vendo antes. O quadro era praticamente um MILAGRE. O Emygdio de Barros internado há décadas, a galera tratando como se ele fosse uma pessoa sem valor nenhum, não dando nada por ele, só Deus sabe o que esse homem sofreu, pra chegar a Nise e dar uma chance. O quadro me deixou pensando tanta coisa! Imagina quanta gente talentosa deve existir por aí, mas NUNCA será descoberta. Imagina quantas pessoas só precisam de 1 chance, literalmente UMA, para revelar uma arte simplesmente necessária. A melhor escritora pode ser uma mulher que nunca publicou um livro. O melhor cantor pode ser um homem que nunca subiu num palco. A melhor bailarina é uma garota que nesse momento está trabalhando numa fábrica para levar comida para dentro de casa. O melhor comediante é um senhor muito feliz internado num hospital. É extremamente triste.

Em algum momento ali encarando o quadro do Emygdio, eu chorei.

Ainda não sei dizer se todo quadro tem uma história, mas às vezes eles dão com ela bem no meio da nossa cara.

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BH é uma cidade belíssima, recomendo.